A confiança dos cidadãos no Estado de direito assenta na convicção de que as instituições públicas actuam com imparcialidade, rigor e decoro. Quando essa confiança é traída por quem tem o dever de a preservar, a própria arquitectura da democracia é abalada. Nos últimos anos tornou-se impossível ignorar um fenómeno que, não sendo novo, adquiriu proporções alarmantes. Refiro-me à fuga de informação proveniente de dentro da Administração Pública, onde alguns funcionários, movidos por interesses próprios, chegam a comercializar elementos protegidos pelo segredo de justiça. Trata-se de uma prática criminosa que ameaça a integridade do sistema judicial e compromete o princípio fundamental da igualdade perante a lei.
Como explicar que uma investigação prestes a iniciar se encontre já mencionada na comunicação social. Tal ocorrência só admite uma conclusão plausível. Antes de qualquer acto processual ser praticado, o número de pessoas com acesso a elementos de um procedimento é necessariamente reduzido e sujeito a dever estrito de reserva. Se a imprensa divulga pormenores quando o próprio interessado ainda não foi notificado, isso significa que alguém violou o segredo de justiça, cometendo um ilícito grave que compromete a imparcialidade do processo e destrói a igualdade de armas entre o Estado e o cidadão.
Uma investigação que nasce no espaço mediático, antes de nascer no Ministério Público, nasce viciada. Revela que se privilegiou a exposição pública em detrimento da legalidade e que o objectivo não é esclarecer factos, mas criar suspeição antes de existir prova apreciada por autoridade judicial competente.
Este fenómeno, infelizmente recorrente no contexto institucional que todos conhecemos, não surge por geração espontânea. Resulta, quase sempre, de actos conscientes praticados por quem, investido de funções públicas, decide violar os princípios éticos e legais que o obrigam à reserva absoluta. Quando tal violação é motivada por vantagem económica, a gravidade torna-se ainda maior. Significa que a honra de um cidadão pode ser sacrificada por um funcionário que, em vez de servir o Estado, serve o seu bolso. Tal prática destrói o prestígio das instituições e converte o segredo de justiça num mercado negro onde se vende e compra o que deveria permanecer protegido.
O segredo de justiça, tal como previsto no ordenamento jurídico vigente, não é um capricho legislativo. É uma garantia essencial do processo penal, destinada a proteger a investigação, a presunção de inocência e a dignidade do cidadão. Quando funcionários públicos utilizam o acesso privilegiado a informação sensível para fins lucrativos, não estamos perante mera infracção disciplinar. Estamos perante uma perversão da função pública e uma forma de corrupção que, pela sua natureza clandestina, corrói silenciosamente a credibilidade do Estado.
A divulgação ilícita de elementos processuais cria um ambiente onde a suspeita substitui a prova e onde a praça pública se sobrepõe ao tribunal. Uma sociedade que se habitua a ver investigações transformadas em espectáculo não pode esperar justiça. Pode apenas esperar ruído, manipulação e destruição de reputações. Falo com o peso de quem já sentiu na pele as consequências deste mecanismo. A fuga de informação funciona como punição antecipada, aplicada sem julgamento e sem sentença, que coloca o cidadão numa posição de vulnerabilidade total perante uma máquina estatal que deveria protegê-lo e não expô-lo.
A responsabilidade por este estado de coisas não recai apenas sobre quem vende a informação, mas também sobre quem a compra e difunde sem exigir escrutínio. A comunicação social tem o dever de informar, mas não tem o direito de participar na violação da lei.
A procura incessante de notícias sensacionalistas alimenta este circuito de ilegalidade. E enquanto houver quem pague, haverá quem venda.
O combate a esta prática, cuja repetição já constitui um problema estrutural, exige coragem e determinação. Exige investigações internas sérias, sanções exemplares, responsabilização criminal efectiva e uma cultura institucional que não tolere brechas éticas. Exige também que os responsáveis políticos reconheçam a gravidade do problema e não o tratem como episódio menor. A democracia não se defende apenas com discursos; defende-se com actos.
Concluo reafirmando que a fuga de informação praticada por funcionários públicos, especialmente quando motivada por dinheiro, representa uma ameaça profunda ao Estado de direito. Enquanto esta conduta não for erradicada com rigor, viveremos num espaço ambíguo onde o segredo de justiça é letra morta e onde o cidadão pode ser condenado publicamente antes mesmo de ser ouvido por autoridade judicial competente. A liberdade, nestas circunstâncias, deixa de ser um direito pleno para se tornar uma promessa frágil que o Estado tem o dever urgente de reconstruir.
César DePaço
Empresário e Filantropo | Cônsul ad-honorem de 2014 a 2020
Fundador e CEO da Summit Nutritionals International Inc.
Presidente da Fundação DePaço
Defensor incondicional das Forças de Segurança e dos Princípios Conservadores
Fonte: LusoAmericano